sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Afrodescendência Afirmativa: Os Toques & Tons das Canções 

Até que os leões possam contar suas próprias histórias, as histórias de caça irão sempre glorificar o caçador - (ditado africano) 

A implementação da lei 10.639/2003, na área da Educação, trouxe para sala de aula a fala dos tambores, na medida em que possibilita ao currículo escolar trabalhar, em todos os níveis de ensino, com as questões da cultura e história africana e afrobrasileira. 

Fruto de uma luta coletiva do Movimento Negro, essa lei abriga o sonho de vários homens e mulheres que desde a África reagiram contra o ESCRAVISMO CRIMINOSO que lhes foi imposto pelo colonizador. Foi por conta do embate coletivo do povo negro que hoje tornou-se legal estudar de maneira aprofundada e festiva a contribuição desta cultura e história na formação da sociedade brasileira. Essa lei, se nós fossemos buscar uma representação próxima do concreto, ela seria assim uma espécie de Baobá - forte e frondosa - e suas folhas o conjunto de amor e dor de cada negro e negra feito seiva lhe dando vida, e dela recebendo vitalidade. 

Na cultura dos povos traficados da África para o Brasil, a musicalidade se derrama para todos os lados. Na perspectiva da cosmovisão africana o mundo canta, sobretudo dança! Na cadência rítmica dos griots a sedimentar a memória das comunidades que sempre vão proporcionar aos ouvintes o cantar e o dançar como forma de interagir com a oralidade do c@ntador de histórias; ou também quando a tradição vai dizer que cada pessoa tem sua canção e isso é tão sincero e tocante que se alguém entra em desarmonia a comunidade canta a sua canção para lhe trazer de volta o equilíbrio. E é ainda a musicalidade, agora dos tambores, que vai propiciar uma relação com o sagrado. Na religião da cultura ioruba, os orixás, que são forças da natureza, para estabelecer um contato com os seres humanos são "chamados" através do toque dos tambores. O toque das mãos ao percutir o instrumento possibilita esse vínculo com o sagrado. Nesse momento os corpos dançam, dançam para compartilhar o axé. 

Um trabalho voltado para uma interação com alun@s de ensino médio falando sobre as questões da afrodescendência, talvez encontre uma sintonia fabulosa se buscar a via dos toques & tons das canções. Tod@s gostamos de música. Os(as) adolescentes (eles/elas) respiram através das tonalidades diversas e das múltiplas sonoridades. Ainda mais agora quando dispositivos tecnológicos fácil e sutilmente lhes desconectam do mundo plugando-lhes no umbigo infinito das canções. 

Realmente, a forma ocidentalizada de 'consumir' canção é bem diferente de uma proposta com a tradição africana na qual as canções serão sempre motivo para um congraçamento. Do ponto de vista da cosmovisão africana o barato só vai rolar se partir do meu umbigo e abraçar no mínimo minha comunidade. No entanto, mesmo com essa diferença cultural, o link que irá estabelecer uma mediação nessa nossa brincadeira continua sendo a musicalidade. 

Hoje no Brasil nós já contabilizamos um vasto repertório de canções populares que fazem referências à cultura afrobrasileira, principalmente no tocante ao culto dos orixás. Vai desde as mais refinadas que revelam uma poética para iniciados, passa pelos resquícios de uma onda chamada "axé music" e chega naquelas que não diferenciam candomblé de umbanda. Contudo não perdem o caráter de canal que pode ser estabelecido com (os/as) alun@s, a fim de que seja proposto um diálogo sobre as questões da afrodescendência afirmativa.


As canções que se enquadram no que se convencionou denominar de MPB (Música Popular Brasileira), e que se reportam a essas questões, em sua grande maioria, são excelentes para que a gente possa desencadear, através de suas letras, as mais lúdicas e embaladas ações educativas. Analisar e refletir sobre o contexto e conteúdo dessas canções ou musicalizar & dançar o debate e a pesquisa sobre discriminação racial e/ou religiosa, com certeza é abrir espaço no currículo para que a lei se efetive, é contribuir para uma educação pluralista e nessa pluralidade afirmar a participação da população negra, desconstruindo assim estereótipos e distorções. 

Uma canção precisa dizer ao que veio no tempo exíguo e sempre descartável do mercado fonográfico. Três minutos não comportam a profundidade que deve ter uma dissertação, muito menos a complexidade de uma tese. Ainda assim uma canção é um objeto discursivo carregado de intenções. Precisamos não esquecer de que o discurso se alimenta de um dos recursos mais sofisticados para o exercício do poder: a língua. Consciente ou mesmo sem querer uma canção sempre vai estabelecer uma teia de relações. São essas relações que vão animar a aprendizagem cantante. É o que a canção revela ou esconde que vai conduzir o diálogo horizontal em sala de aula. 

Uma coisa de imediato salta aos nossos olhos: noss@s alun@s estão submers@s em canções e, podem acreditar (eles/elas) a-do-ram! O que há de tão contagiante nesse tipo de informação? Forma? Deforma? Tem espaço na sua escola? Não é de hoje que a canção vem marcando colado, às vezes no "fundão" ou até mesmo por entre os fones de ouvido mais descolados da sala. Para a cultura de base africana [cantar-dançar] é o mesmo que viver. Não seria esse um toque para que a gente repense nossas teorias tão excludentes da sensibilidade? E por falar em exclusão, uma vez que nós vamos abordar a afrodescendência de forma afirmativa, não seria a hora de criarmos outras metodologias? A cosmovisão africana ficaria encantada, os/as alun@s, idem. 

Fortaleza, 04 de outubro de 2008 
Wellington Pará... (toquetons@gmail.com)