"Alegrias de Quintal" - (Projeto Propag)

Vamos nessa, Tambor de Rua!


Segundo  os DOGON, no Mali, "Tambor, fala"!

Em:11/04/2012 - quarta - 15:45h

 
Nós realizamos no último dia (10.04.2012 - terça), das 18:30 às 21h, como parte da disciplina "História dos Afrodescendentes", da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, o Iº Diálogo com Africanos da Faced.

A África, pela boca dos africanos, é mais saborosa ainda. É puro sentimento. 






Em: 04/04/2012 - quarta - 10:10h - 

Na próxima terça-feira, dia (10/04/2012 - das 18:30h às 21h), a disciplina "História dos Afrodescendentes", deverá contar com a participação dos estudantes africanos (Cornélio, Andy e Manuel), num bate-papo sobre suas expereiências e expectativas sobre a parceria África - Brasil.

Vamos ter também uma mostra inicial de como está caminhando os trabalhos com fotografias, nos quais foi solicitado que as pessoas captassem o que para elas seria uma imagem que revelasse uma africanidade cearense.
 
Combinamos que no encontro do dia 17/04/2012, nós estaremos concluindo os textos: "Os Negros não se deixaram escravizar - Temas para as aulas de Histórias dos Afrodescendentes", e também, "Tecnologia Africana na Formação do Brasil", além de contarmos com as pesquisas d@s alun@s sobre (CAFÉ - COURO - CHARQUE). 

Os textos para download encontram-se nos dois (02) links abaixo:





Seria o RAP "uma espécie de contra sentido da erudição beletrista?"

 ZÉ LIMEIRA - A ALUCINAÇÃO RÚSTICA DA LINGUAGEM - Muniz Sodré - (1975)

Peço licença aos prugilos / Dos Quelés da juvenia / Dos tofus dos audiacos / Da Baixa da silencia / Do Genuino da Bribria /Do grau da grodofobia
Quem assim pede licença é, na descrição do jornalista paraibano Orlando Tejo, um "caboclo de estatura avantajada, desinibido e desabusado, doublé de menestrel e jagunço, carismático", nascido em 1886 no chapadão da Serra do Teixeira, morto em 1954. Ao cantar, costumava amarrar ao pescoço extravagante lenço cor de sangue-de-boi, com um volumoso nó à altura da laringe, onde trazia pendurado ordinário e aberrante anelão de pedra azul, realizando violento contraste de cores. As mãos estavam sempre enfeitadas por 10, 12 e às vezes 15 anéis que reluziam enquanto os grossos dedos tangiam ágil e meticulosamente a dúzia de cordas da viola, todas afinadas numa só tonalidade. Seu nome?

"Eu me chamo Zé Limeira / Cantadô que tem ciúme / Brisa que sopra da serra / Fera que chega do cume / Brigada só de peixeira / Mijo de moça sorteira / faca de primeiro gume."

Zé Limeira era um poeta que não sabia ler nem escrever. Mas será mesmo possível falar de uma poesia analfabeta? Achamos que esta questão assume grande pertinência quando se reexaminam os conceitos em torno do fenômeno poético e as relações da História com a poesia. Poeta, claro, é aquele que se deixa arrebatar pela linguagem, confiando-lhe a produção de seu desejo, a instauração do real. Linguagem não, língua: a recusa em aceitar a comunicação como instrumentalidade, como um mero utensílio, chega a constituir, na visão sartriana, o traço essencial do poeta.

A palavra poética não é um simples signo, algo que se deixe definir em função das articulações de um sistema produtor de significações (a língua) em sua interferência com a História. "Para mim", diz Breton em Manifestos do Surrealismo, "a mais forte das imagens é a que apresenta o grau arbitrário mais elevado, não o escondo, aquela que se leva mais tempo a traduzir em linguagem prática". Assim, quando Homero fala numa "aurora dos dedos de rosa", é preciso abstermo-nos de usar a arma da decomposição analítica, para que viva a sua imagem. É forçoso, então, que, como o poeta, nos entreguemos a um movimento análogo ao provocador de sua aurora, tenha esta nascido da fala ou da escrita. A poesia não está necessariamente confinada às formas gráficas da linguagem. A epopéia poética, por exemplo, pertence primordialmente às civilizações orais, lugares de predominância do sistema de comunicação direta. Este universo cultural produziu os aedos (gregos), os bardos (célticos), os trovadores (que, na Europa até o século XVI, cantavam a poesia), os griôts (africanos), fazendo da linguagem poética o veículo, por excelência, de lendas, história, moral, metafísica, informações, etc. No Nordeste brasileiro, o cantador exerce, de modo muito legítimo, essa função. A cantoria (originária da Serra do Teixeira, na Paraíba) é a lírica improvisada, em geral, num encontro poético de dois cantadores que assume a forma de um desafio. O repente é o produto metrificado e rimado desse encontro. O jogo da linguagem na repetição de sons —elemento constante da poesia de todas as épocas, da mais antiga à moderna — empenha-se aí em fazer coincidir formas sonoras, a brincar com a lei de distância entre sistema e sintagma na língua. Zé Limeira praticava este jogo com absoluta mestria, não errando jamais na métrica ou na rima, e sem perder a musicalidade verbal.

"Eu sou corisco pastando / No vergel da vantania / Oceano disdobrado / No véu da pilogamia / No dia trinta de maio / Pelei trinta papagaio / Santo Deus, Ave-Maria."

Na cantoria, a música é frequentemente regida pela dinâmica verbal do verso ou texto cantado, ao invés de aceitar como impulso desencadeante a simetria da forma musical dada a priori. Modos tonais já abolidos pelo Oriente musical costumam, assim, ressurgir como uma centelha no calor de um desafio. E uma palavra do verso pode surgir tão "desorganizada" do ponto de vista semântico quanto a sintaxe musical. Há realmente música no verso de Limeira, ela se afina com um espantoso esforço de reinvenção da linguagem. Palavras como prugilo, juvenia, tolfus, aldiacos, grodofobia, pilogamia e outras transitam comodamente na lírica do cantador. Certa vez, outro repentista (Arrudinha) exigiu explicação: 
"Eu jamais ouvi falar / Nessa tal de juvenia / Nem tampouco em aldiacos / Dessa sua silencia / Limeira, me fale sério / Que diabo é grodofobia?"

E o poeta não se fez de rogado:

"O mestre inda não sabia / Que Jesus grodofobou? / Apois fique conhecendo / Que Limeira prugilou / E o cipó de Seu Pereira / Também já juveniou".

Desse modo, pela força do significado arbitrário, do neologismo instantâneo, Zé Limeira — como Éluard, quando em seu poema Liberté diz "... et par le pouvir d 'un mot / Je recommence ma vie " — recomeça pela linguagem "ilógica" a sua vida num outro espaço, que bem poderia ser o de São Saruê, a terra mítica do sertanejo nordestino. Limeira fala a língua que se poderia falar em São Saruê. Por seu verso "absurdo", ele se relança como algo diferente do que se espera: não aquilo que é, nem aquilo que pode ser, mas aquilo que não se deve dizer. Para ele, pouco importa o significado, o que vale é dizer. Se para Éluard "a terra é azul como uma laranja", Limeira proclama tranquilamente:

"Vi passar uma cobra azul, falando num microfone".

Embriaguês de linguagem ou loucura pura e simples? Um certo membro da Academia Brasileira de Letras, ao tomar conhecimento da poesia de Zé Limeira, invocou a psiquiatria e rejeitou qualquer possibilidade de significação surrealista na obra do cantador: "Um analfabeto não teria essa sensibilidade". No entanto, basta olharmos com atenção os loucos das cidadezinhas do interior do país para concluirmos que sua sensibilidade leva-os a prescindir, galhardamente, da medicina de Pinel. Mocidade, por exemplo, o louco "oficial" de João Pessoa, sustenta que "é preciso ter muito juízo para ser louco na Paraíba". Realmente, ainda hoje no Nordeste o discurso da desrazão mantém a sua velha força de comunicação cultural. A poesia de Zé Limeira tem alucinação, pelo processo esquizofrênico, da geografia, das raças, da História Universal. É o que diz Gilles Deleuze em seu L'Anti-Oedipe a propósito do esquizo: "(sinto que) eu me torno Deus, eu me torno mulher, eu era Joana D'Arc e sou Heliogábalo, e o Grão-Mongol, um chinês, um pele vermelha, um Templário, eu fui meu par e fui meu filho". Acabando com o princípio de realidade, o esquizo só é alguma coisa, sendo outra. E por estar em todo lugar onde o real é produzido (sempre pelo desejo), ele "viaja' para dentro de si, juntando os continentes, refazendo as lendas, mexendo com a História. O verso de Limeira arrebenta não só a ordem histórica, como a geográfica, religiosa, lingüística. É assim que

"Quando Jesus veio ao mundo / Foi só pra fazê justiça / Com treze ano de idade / Discutiu com a doutoriça / Com trinta anos depois / Sentou praça na puliça".

Ou então:

"Sairam lá de Belém / Cristo e Maria José / Passaro por Nazaré / Foro para Batelelém / Chupô cana num engenho / Pediu arrancho num brejo / De noite armuçô um tejo / Lá perto de Piancó / Na sexta-feira malhó / Foi que Judas vendeu Jesus".

Um exemplo geográfico:

"Lá na Serra do Teixeira / Nasci, sendo bem criado / Na Alemanha os japonês / Já sabe lê um bucado / Conheço esse mundo inteiro / Fica tudo no estrangeiro / Do Teixeira do outro lado".


O aspecto "esquizo" da poesia de Zé Limeira não é nada, já se vê, que possa ser dominado por qualquer discurso psiquiátrico. Seus versos são percorridos por uma intensidade particular de sentido, que indica um modo especifico de pensar (ao contrário do cantador típico do Nordeste, que aposta quase tudo na rima). Limeira é bem diferente:

"Eu sou um nego moderno / Foi não foi, estou pensando..."

Ele tinha os seus sistemas (filanlumia, pilogamia, etc.), em cujo interior eram produzidos os versos. Por exemplo, o sistema da Filosofia Regente, aparentemente relacionado com os temas da História Sagrada:

"Os Hemisférios do prado / As palaganas do mundo / Os prugis da Galiléla / Quelés do meditabundo / Filosomia Regente / Deus primeiro sem segundo".

No pensamento do poeta, o homem é o que faz, e assim assegura a mais absoluta transitividade ao ser:

"Se tu fôr na minha casa / Tem capim pro teu cavalo / Se chegar um fotoigáfo / Eu mando fotogaifá-lo / Se chegar um filósofo / Eu mando filosofá-lo".

E a visão linguística de Zé Limeira deixa transparecer o conceito de metáfora vívida:

"Eu sou açude corrente / Dentro da mata bravia / Gramática azul, beiçuda..."

Ou seja, ele próprio é a gramática, é a linguagem e seu código, sua realidade é a palavra. Não é outra a idéia que Baudelaire fazia do processo poético: "... Teu olho se fixa numa árvore harmoniosa, curvada pelo vento... Tu emprestas à árvore tuas paixões, teu desejo e tua melancolia, seus gemidos e suas oscilações tornam-se os nossos, e logo tu és a árvore".

O sentido que percorre toda a poesia de Limeira é, antes de tudo, o do encantamento da linguagem. O poeta faz ver o imenso fascínio da palavra — ele a ama por si mesma, desprezando qualquer pretensão lógico-discursiva. Ao mesmo tempo, entretanto, fala do poder de classe da palavra, da força de dominação que ela pode exercer. No interior Nordestino em que viveu - Chapadão do Teixeira, Cariri paraibano, Campina Grande, Catingueira, etc. — o verbo tem o seu mandarinato, a palavra é também uma arma, assestada o tempo todo contra o analfabeto. É o caso do discurso bacharelesco, beletrista, doutoral, tão próprio das elites de nossa velha realidade semicolonial. As banalidades greco-latinas, anglo-germânicas ou clássicas a varejo convertem-se num dialeto empolado e fantasista, mas em geral eficiente como instrumento de poder.

A poesia de Zé Limeira produz uma espécie de contra-sentido da erudição beletrista. A criança transforma a palavra que não entende bem, gerando formas lingüísticas que exercem, às vezes, grande encanto sonoro, mesmo sem significação. O cantador do Teixeira — que não era criança, mas poeta — metamorfoseia a língua brasileira a partir de seu irradiamento erudito (exemplos: prodologicalidade, filupafilutupéla), produzindo efeitos não simplesmente fonéticos, mas principalmente irônicos ou grotescos. Esta última categoria vem muito a propósito, pois seus versos julgam e exasperam, com a crueldade lúcida do louco, com o lirismo dessabido da criança, com a ousadia lúdica do analfabeto e com o ritmo interno do poeta, o discurso pedante. Com Zé Limeira, assim como os dementes das cortes orientais que fascinaram os Cruzados, o grotesco reassume a sua função social de denúncia, por um certo distanciamento irônico, de mecanismos de poder. Mas é um grotesco de linguagem que não desconhece o lírico, existindo ao lado de um sentimento forte do mundo:

"Canto repente no Norte / Arranco feijão no Sul / Toco fogo no paul / Não tenho medo da morte / Uma mulata bem forte / Uma novilha parida / Uma sala bem comprida / Um cangote, duas perna / Poço, cacimba e cisterna / Tenho saudade da vida".

A arte de Zé Limeira tem, ao mesmo tempo, um sentido que se poderia chamar de "ecológico", na medida em que desnuda a perda de contato dos objetos técnicos, da civilização industrial, da escrita, com o jogo. O apito do trem era capaz de assustá-lo como se fosse o berro de um demônio. Foi sarcástico com o gravador:

"Heleno, que bicho é esse / Que tem fala de homem macho? / Parece um tatu quadrado / Cum cinturão no espinacho / É uma coisa tão pouca / Mas ninguém sabe se a bocal Fala pro riba ou pro baixo".

Mas seu sarcasmo maior mirava a letra. Sentir a poesia de Limeira é dar-se conta de um aspecto particular do poder: a exclusão do analfabeto pela cultura escrita, do espaço social reconhecido oficialmente. É esta mesma cultura que, conjugada com a escola e suas determinações históricas de Estado, exclui a possibilidade de uma poiesis analfabeta. Isto nos leva diretamente à questão de saber se o poético é uma categoria (implicando, portanto, numa atitude capaz de classificar um texto como poético ou não) ou uma propriedade objetiva de linguagem. Preferimos considerar a primeira hipótese: a poesia é algo que se faz ou desfaz aos olhos de quem produz ou de quem pode enxergá-la. Poeta é aquele que vê além da transparência da língua. Mas a Estética, comprometida com o funcionamento escolar, procura aprisionar o poema em suas formas históricas "necessárias", que passam pela letra ou pelo livro.

Zé Limeira é um dado contraditório. Seus versos feriam as perspectivas de velhos discursos—"ainda faço uma ferida no toitiço da velha madrugada". E talvez seja a percepção disto que leve a gente do sertão, os filhos de São Saruê, a concordar com o autojulgamento do poeta:

"Sou o cantado malhó / que a Paraiba criô-lo".

(Muniz Sodré - Revista Tempo Brasileiro, nº 40, São Paulo, 1975)


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